sexta-feira, 25 de maio de 2012

Genealogia e Padres; Amigos e Livros.


Sem as crenças e as religiões, a genealogia enquanto ciência seria muito mais difícil de ser observada e preservada. O mistério do replicar desordenado de seres humanos, aglutinados em famílias, parentelas, tribos, clãs, pátrias, continentes, é evidente e inegável que além da história, e um aspecto de seu entendimento pela genealogia, possui uma carga fortíssima de espiritualidade.

Porque por todo caminho da humanidade, está o olhar para a ancestralidade advinda do encadeamento de infinitas e perdidas gerações, que conjugada com a história, seus fatos e seus atores, compõem a tessitura do fio perene da humanidade, que passa pela fração do eterno presente, amarrando cada minuto do futuro que se extingue, ao todo do passado que se acumula no desde de sempre.  Não há religião que despreze ou ignore os ancestrais ou seus predecessores. Porque, que se saiba, não existiu uma religião que diga ao homem ficar solitário, isolado da espiritualidade de todo o resto, separado da humanidade e exilado de um passado coletivo, e assim por conseguinte; indiferente a sua ancestralidade.  

Assim é perfeitamente compreensível que não exista pesquisa genealógica no mundo ocidental que possa prescindir de informes adquiridos através dos registros e documentos produzidos pelas religiões judaico-cristãs, o que faz ser natural e compreensível serem os envolvidos diretamente na permanência e sobrevivência das crenças e religiões ocidentais, (as ditas civilizadas e civilizadoras) muitas vezes as fileiras de onde justamente saem os mais dedicados cultores da genealogia. Por isso é que sempre existiram padres, pastores, e mesmo rabinos, que foram genealogistas afora serem eles próprios os preservadores, manipuladores e atores dos próprios registros onde se apoiaram e apoiam desde sempre os genealogistas.
  
Posteriormente, com a expansão, progresso e diversificação da civilização, e a modernidade dos pensamentos jurídicos e laicos, houve a necessidade de outros tipos separados de registros que são os que compõem os fundos jurídicos, cartoriais e notários, registros estes onde também abeberam de conhecimentos os genealogistas. Temos visto então tabeliães e notários também genealogistas. 

Assim é muito natural, que um religioso católico foi o mentor inicial da pesquisa e estdos que deram inicio a notáveis, raras e estimadas obras da genealogia brasileira no século XIX. Este religioso foi o vigário pernambucano João Evangelista Leal, alcunhado de Padre Periquito, pela “circunstancia de usar roupa de cor verde quando começou seus estudos” e “não o molestando tal apelido, dava por ele e adicionou-o ao próprio nome por ocasião de receber suas demissórias”. Nascido a 21 de janeiro de 1798 em Recife, onde faleceu a sete de novembro de 1851 depois de “padecer dos rins por mais de 30 anos”. 

A árvore do Padre Periquito ?
No ano de 1844 foi este Padre Periquito quem principiou através de uma carta circular aos parentes, a recolha de dados para a fatura da genealogia de sua família, e que permitiu em seu tempo, a confecção de uma árvore aquarelada enfocando a descendência de D. (sic) João Alfradique, o primeiro ascendente da família Leal de Pernambuco, cujos filhos nasceram entre 1670 e 1680. 

Este trabalho decerto que estimulou os parentes, pois em 1851, seu parente, o  Brigadeiro Antonio Gomes Leal enviou novamente um interessante questionário aos familiares, com solicitação de dados e detalhes que demonstram já naqueles tempos remotos, uma visão muito clara da importância de determinados informes biográficos para a construção de uma bem feita resenha de genealogia.

Segunda Edição
O brigadeiro Antonio Leal falecido com grandes honras e pompas no Recife em 1879 foi um atuante militar pernambucano, que teve destaque não somente na Guerra do Paraguai, mas em outros diversos postos de comando em sua província natal, carreira esta que por sua vez, não o impediu de se ocupar com a pesquisa  dos complementos da arvore genealógica da família, o que empreendeu até o ano de 1862. Ele teria publicado uma primeira edição (que jamais vi!!) da genealogia da família, em 1864, já em formato de livro, conforme se depreende do titulo da obra que é um dos itens estimados de minha coleção dos raros livros de genealogias brasileiras publicados no século XIX: “Genealogia da Familia Leal: Trabalho Encetado pelo Vigario João Evangelista Leal Periquito, continuado pelo Brigadeiro Antonio Gomes Leal e Concluido em 31 de dezembro de 1864 pelo Negociante Antonio Gomes Miranda Leal, Auctor desta Nova Edição...” (Pernambuco – Typographia do Jornal do Recife – 1876). 

Antonio Gomes de Miranda Leal citado no título acima, é o terceiro autor, e sem nenhuma dúvida, o que mais se empenhou e valorizou os esforços com a genealogia familiar de seus dois antecessores. Figura personalíssima ele foi muito mais que um negociante como se apresenta acima; na segunda edição ele não resenhou no apêndice da obra a sua biografia, o que, no entanto fez na terceira edição, em uma narrativa com tal riqueza de detalhes memorialísticos, o que acabou por tornar a sua obra além de uma curiosidade, um admirável documentário escrito sobre o viver de um homem brasileiro do século XIX. No caso, um homem cultor da genealogia. 

Antonio Gomes de Miranda Leal
Assim numa torrente de informações e registros encadeados e detalhado em minúcias numéricas, ele vai narrando seus estudos, seus mestres, suas doenças, suas viagens com detalhes tais como alem dos nomes dos companheiros de viagens, os hotéis, seus nomes e endereços, e nomes dos navios com totais de passageiros e tripulações,  e outras informações curiosas, surpreendentes e engraçadas, como quando chegou na cidade de Aracati, doente, em 1848, coube-lhe “fazer a penúltima noite de novena da festa de nossa Senhora da Conceição, na Matriz, a 7 de dezembro, o fez de tal modo nunca ali visto, tendo a todos agradado” ou então que estando na cidade do Porto, em Portugal, “ no baile dado a família Real, na Assemblea Portuense, a 30 de abril de 1852, dançou no mesmo quadro da Rainha, ao lado dela”, e que da ilha da Madeira, onde os amigos achavam “seria sua sepultura”, por estar doente, recuperou-se para logo em seguida casar no Recife. 

Cabeça de negociante, ele registrou e informou tudo com a minúcia de um guarda-livros antigo: “desde de 1852 que começou a receber cartões de visitas todos guardou, por onde andou, elevando-se hoje  a 3064”. Informa também que guardou toda sua correspondência: “ tendo cartas e contas numeradas desde as primeiras que se fizeram, atingindo aquelas o n. 26.992 e estas o n. 45.957, alem de quantidade em livros”. Da mesma forma, achou importante informar, “que  em 1881 deu 54 arvores a Camara Municipal” (do Recife). Memorialista atento, em Madrid ele registrou que se hospedou no Hotel de Pariz “onde estava a Rainha da Suécia” para em Nantes acrescentar em sua biografia que dormiu no mesmo aposento em que o segundo monarca brasileiro havia se hospedado. Vaidoso, informou também que “ é pontual e assíduo na Junta Comercial, á qual sempre foi vestido de preto e casaca todas as quintas feiras desde 1877 até hoje” (1885) . 

Terceira Edição
Terceira Edição
Ele além de divulgar o valor que gastou na educação dos filhos, avisa que guardou todos os 360 recibos das 42 pessoas ( professores)  que teve em casa, inclusive os da francesa Joana Salomos a quem pagou a quantia de 1.680$ por ano. É uma pálida ideia o que transcrevo aqui, da riqueza de detalhes  de sua vida pessoal e familiar que apresentou nesse seu livro, tanto que não posso encerrar essas observações, sem deixar de transcrever os registros que fez de que “saltando em São Vicente de Cabo Verde vio o hermafrodita Antonio Ramos”, e que também que “possue uma lista dos escravos que tem tido desde 22 de julho de 1854” afirmando que no momento que escrevia o livro tinha “apenas uma, de nome Damiana, com 23 anos de idade, que comprou em 1877 e custou 1:000$000, a qual será considerada livre, com ou sem carta, no dia em que terminar a publicação deste livro". A liberdade de uma escrava aliada a publicação de um livro de genealogia!!! Incrível e inédito!!! 

Econômico decerto que era, no fim do livro ele  anota que com a pesquisa da genealogia mais as cópias litografadas da arvore que mandou fazer; “teve um dispêndio de 800$” e que esta árvore media “24 polegadas de altura e 18 de largura”. Ele colecionou também retratos dos parentes, tinha “130 retratos” deles e “pretendia possuir  um quadro completo da representação pessoal de toda família”. Admiravel!!! 

Este gracioso e perfeito exemplar da segunda edição, foi adquirido pelo meu grande e querido amigo, o falecido colecionador Waldyr da Fontoura Cordovil Pires, no leilão promovido a décadas passadas, da coleção de móveis e objetos que recheavam o castelinho da família Smith de Vasconcellos em Itaipava, RJ. Os Smith Vasconcelos, o velho barão, filho e neto foram genealogistas notáveis no século XX e espero um dia poder resenhar algo desta família suas publicações e seus autores. No dito lote do leilão constavam dois títulos, esta segunda edição  da Família Leal, e o também muito raro livro de que falarei no próximo post ; “A Família Souza Leão”.  Como eu possuía já uma terceira edição, da Familia Miranda Leal, publicada também por Antonio Gomes de Miranda Leal, em 1885 no Recife, impressa pela Typ. Industrial, que me havia sido oferecida por Carlos Rheingantz em 1985, Cordovil com a generosidade que lhe era peculiar para comigo, não se importou ao dividir em duas partes o lote, que eu ficasse com o exemplar da família Souza Leão, conservando ele em sua biblioteca a raríssima edição de 1876.

Após o falecimento do meu amigo  no ano passado, ajudei a viúva Cordovil, a desfazer de parte dos livro da grande coleção genealógica de seu marido, e sem atentar para sua raridade, e de não possuir a obra nesta edição, encaminhei o raro livrinho para o Seminarista maranhense João Dias de Resende Filho.

Para poder fazer o cotejamento das duas edições, na feitura deste texto, ao perceber a lacuna que o então distante livreto me fazia na coleção, escrevi de imediato a este amigo, um genealogista promissor, seguidor pioneiro deste blogg,  jovem e já autor de um muito correto estudo sobre a sua família Pecegueiro, recentemente publicada numa das revistas da ASBRAP. 

Ele com a largueza desinteressada dos bem formados de coração, teve a grandeza do gesto de me reenviar o exemplar da segunda edição, de maneira que ele conste na minha coleção, agora não mais somente como obra do Padre Periquito. Ao lado do exemplar da terceira edição serão boas lembranças dos amigos Carlos Rheingantz e Waldyr Cordovil, e mais ainda lembrança da excelência do gesto de João Dias Resende Filho, futuro padre, genealogista e amigo, a quem aqui de publico agradeço!!! 

Assim se constroem as coleções, não só de gastos financeiros, mas de sorte e gestos de amizades, mais de gestos de amizade do que sorte e dinheiro!!!. Creiam nisso!