quinta-feira, 7 de junho de 2012

Genealogia, Orgulho & Soberba


A palavra família é um termo que tem sua primeira acepção e origem na designação dos restritos integrantes do lar de um casal e seus mais próximos cognatos pelo sangue. Assim, os fora desse lar, ainda que com parcela do mesmo sangue, seriam os parentes, que integrariam a formação da parentela de cada família. Assim é que com varias famílias e um ancestral comum, temos uma parentela.  A dinâmica das famílias e a expansão de suas consequentes parentelas, e não tem novidade alguma nisso, é registrada por meio do que viemos até aqui a chamar de genealogia. E por ela que sobrevive a memória dos ancestrais e se permite contar e saber os graus de parentescos entre conhecidos e desconhecidos. 

Existem maneiras diversas de se introduzir, recolher, ordenar e expor os dados genealógicos das parentelas, dentre os quais são as mais comuns; a partir de abordagens que enfocam uma ancestralidade comum pelo sangue ou alianças, advinda de uma personalidade de destaque ou até mesmo um banal vulto comum a diversos pares e ímpares.... Outra segunda opção é a regional, pela recolha de grupos familiares que atuam em determinada região geográfica. Uma terceira, e das mais populares opções em se abordar e apresentar uma genealogia, são as elaboradas a partir da ênfase em determinados sobrenomes. Este tipo de abordagem por apelidos é a que mexe em muitos casos, mais direto com a vaidade e o orgulho dos mortais. 

Aglutinar um apelido familiar a um brasão de armas, e fazer um estudo genealógico se transformar num escudo nobiliárquico é sem duvida alguma uma das causas do sucesso, interesse  e persistência da popularidade da genealogia ser, por muitas e muitas vezes, habilmente manejada como uma muleta do orgulho capenga e arma de sustentação do ego dos menos aquinhoados com a virtude da humildade. E quando esse apelido está conectado com boa sonoridade a algum outro, ou então é estrangeirado; triplica o valor pelo senso ilusório da vã soberba aristocrática estar fundamentada em elegante isolamento social do resto dos botocudos civilizados que habitam cidades, selvas e caatingas brasileiras. São tanto livros e livros com brasões nas capas, no geral usurpados de forma ingênua de seus legítimos proprietários.... porque as armas plenas lusitanas, os heraldistas sabem como lição básica, são de uso exclusivo dos chefes de cada família....

Mas é impossível para quem tenha hoje a mínima iluminação na cachola, utilizar a genealogia como fermento da soberba posto que, pela lógica ninguém nasceu com menos gerações que os outros viventes, pois mesmo que o ignorante não saiba declinar os nomes de seus pais e avós, é evidente que tem o mesmo exato número de antepassados sabidos e desconhecidos que tem as rainhas da Inglaterra ou do baralho. Também descender de figurões da nobreza da antiguidade ou tempos mais recentes é tão vazio e ineficaz biologicamente quando se lembra que hoje calculam que grande parte dos europeus descendem do imperador Carlos Magno, além  do que, em caso de menor distância geracional, ser ridículo um neto que goste de roer a canela do avô e por isso se achar com mais valor ou melhor que alguém outro não neto de avoengo com canela semelhante ao seu vovô....

E como ainda não existe (e nunca existirá) genealogia  que remonte ao ventre da primeira mulher bíblica, a qualquer homem moderno que seja, pobre ou rico, por mais ou menos pretensão de nobreza que tenha, se ele quiser pensar em raízes entranhadas em tempos imemoriáveis, como a dos reis merovíngios que iniciava em Faramundo, ("de quem alguns duvidam existir", como escreveu Dom Antonio Caetano de Souza), só restará a este homem, o consolo de se conformar humildemente com o conhecimento genealógico-biológico, que está ao seu alcance e todos os mais viventes racionais, através do simples teste científico de DNA que reparte e nivela toda a humanidade na descendência das chamadas cinco Evas.

Um dia certamente no futuro, antes da luz do Sol acabar, ainda se fará um estudo acadêmico, psicológico ou psiquiátrico da real vocação que redundou em muitos dos livros e folhetos de genealogia brasileira que entopem minhas estantes. Tenho para mim que o mais equilibrado destes empenhos é o que alia a genealogia com alguma crônica ou memória  intima familiar, e que permite acompanhar as  pequenas histórias das gerações em seus cursos pela cronologia do mundo. Isso com a humildade e certeza que ao se atingir certas épocas históricas e locais geográficos, já não se descende de pessoas especificas maiores ou menores, melhores ou piores, mas sim de toda aquela civilização ou província, como bem definiu Marguerite Yourcenar em texto magistral. Assim como exemplo, quem sabe que descende de um fazendeiro ou usineiro no Brasil do século XIX, já nem precisará dizer o nome do cidadão ou seu apelido familiar, pois  na informação e menção do vulto, já estão todas as variáveis que não farão diferença humana alguma  substancial, e nem social, pois mesmo se sujeito em foco for um barão, escravo ou um sitiante também serão grandes as chances do sujeito do presente, o descendente (ou seus pósteros), por causa do implexo dos antepassados, acabar por descender de todos os tipos representativos desta sociedade ou desta região. Do barão ao ladrão, do padre ao sacristão...

Existe ainda as outras vocações, que vão das perversas e mal intencionadas (as fraudes genealógicas) até as românticas, sentimentais ou saudosistas, caso em que o individuo percebe que determinada família na qual se encarta (e muitas vezes não) ou encartou, não existe mais ou vai deixando de existir, ou também porque a geração que foi bafejada pela sorte já está sua descendência sem o lustro social, político ou financeiro com que brilhou (ou foi reconhecida)  no passado, e já que ele o saudosista, geralmente (ou não) é o que está sendo afastado pelas forças do  destino para longe do eixo  em que gira uma sua parentela ainda abonada e que geralmente não está nem aí para ancestrais ou parentescos, ainda mais se forem árvores encarapitadas de primos pobres, periféricos ou idiotas. Assim é que acabam por existirem famílias ideais, que só subsistem nos livros de genealogia ou nas cabeças dos cronistas com delírio de família, e também nos álbuns de retratos amarelados como definiu a ensaísta e fotógrafa Susan Sontag.

Genealogia tem por vezes aliada com muita familiaridade, muito de ilusão romântica e ingenuidade, pois acreditam muitos, que um apelido tem a força e legitimidade igual a uma marca de cão, galinha ou cavalo, tudo de um tipo só, enganados ou esquecidos que a cada nova aliança em que um sobrenome permanece, inexiste a mínima chance das pessoas serem todas herdeiras iguais, ou "legitimas", ou inalteradas dos antepassados dos quais herdaram o apelido após dezenas de gerações !!! Nada mais cretino!!! Herdam-se os apelidos e a história ancestral somente, mas a cada geração é obviamente uma família nova que se forma. As vezes de uma banda vem o apelido e da outra os defeitos e qualidades, ou vice versa. Só o pavão sempre tão belo, que não cruza com galinhas nem urubus, é sempre pavão, mas mesmo assim, suas canelas nunca são de acordo com as suas plumas.....

Estes pensamentos me distraem a mente quando pego o livro genealógico brasileiro que na sequência de publicações  pela ordem da cronologia das edições, retiro da estante para poder apresentar aqui: "Genealogia da Familia Souza Leão por *****" (Recife, 1881, Typographia Mercantil). Pois não é que o autor, que se escondeu pelos asteriscos, ao publicar a sua genealogia, na explicação ao leitor, logo mo primeiro parágrafo do texto, já que estava indignado com ataques de calúnia e difamações que tinha sofrido pelo jornal "A Democracia", de 18 de janeiro de 1881, informa que; "não foi frivolo o desejo de fazer ostentação da nobreza e limpeza de sangue da família Souza Leão ( grifo dele) que nos levou a publicar a sua genealogia", para então seguir invocando a história de sua extensa parentela, suas alianças, parentescos papais, cargos públicos e, é evidente que, uma grande quantidade de palavras e loas em sua própria biografia, já que sabe-se que o autor foi o bacharel Domingos de Souza Leão, segundo barão de Vila Bela.

A parte histórica e documental da obra é bem correta, e hoje  tanto esta grande parentela de sangue, como o apelido Souza Leão ainda persistem no Nordeste e por todo o Brasil, com destaque social, cultural, econômico  e financeiro, tão igual sempre tiveram segmentos das velhas gerações pernambucanas. A obra seria, não fosse a motivação emproada do autor, ao usar a família como um bloco luzidio e puro, para escudo dos ataques que purgava pela imprensa, perfeita enquanto metodologia histórico genealógica. Deixa assim de ser inteiramente louvável, por que hoje, se analisarmos um livro impresso com a intenção e vocação acima, fica engraçado até de lembrar, que no presente, da representação original e legítima do apelido de qualquer uma das melhores vergônteas dos antigos Souzas Leões (sic), nem o famoso bolo Souza Leão que tanto se orgulhavam as matronas da família escapa e persiste em sua legitimidade, já que teve várias receitas e variantes, todas reveladas por Gilberto Freyre, o que acabou por findar com a mistica da fórmula secreta do prosaico pudim de mandioca ralada.

Meu exemplar da obra, muito raro e estimado, é lindo e admirável enquanto objeto livro, está em perfeito estado de conservação. Tem o primor gráfico de ter sido impressa a folha de rosto com duas cores, um capricho tipográfico não comum, e decerto caro no século XIX!!!  A encadernação simples é da época, feita no Instituto dos Surdos e Mudos da Corte, e conservou as capas amarelinhas originais da brochura. Como eu informei no post anterior, foi comprado num lote no leilão efetuado em 1995 no Castelinho da família Smith Vasconcelos,  em Itaipava. O volume tem (de pessoas que decerto ignoravam que não se dedica um livro quando não se é o autor) duas dedicatórias manuscritas,  uma do Sr. Samuel Gracie ao Dr. Vieira Fazenda, ilustre medico e historiador carioca, datada de 1901, e a outra do mesmo Dr. Vieira Fazenda, datada de 1915, para o Dr. Jayme Smith de Vasconcellos, que aplicou neste exemplar, o seu bonito e distinto ex-libris.