sexta-feira, 31 de agosto de 2018

DOIS RETRATOS, ALGUMAS HISTÓRIAS E OUTRAS RECORDAÇÕES.

Plágio de Livro Ameaçado. Pinturas e Lembranças. Genealogias Ocultas.


Acabei de chegar hoje da região de Paty do Alferes pensando em genealogia, ancestralidade, acasos do destino, manuscritos e livros de genealogia.

Donas Mariana & Emerenciana Avellar 
Fui lá num bate e volta, buscar duas antigas telas maltratadas. Dois retratos de duas venerandas tias-pentavós solteironas que arrematei na bacia das almas num leilão dos derradeiros trastes que sobraram da histórica e pioneira fazenda do Pau Grande, cujo latifúndio esteve em poder de uma mesma família desde as primeiras décadas do século XVIII até meados do século XX.

A história dessa fazenda e seus personagens, resumi num livreto que publiquei há anos passados, em reduzida tiragem, o que no entanto, não impediu de ter sido plagiado por muitos picaretas e embusteiros, que andam por esse mundo a copiar e escrever sobre essa gente muito antiga da velha província fluminense e do  ciclo da cana da açúcar e do café. Aproveitam dessa minha publicação, "Os Ribeiro de Avellar na Fazenda Pau Grande (1994)", até a estrutura da narrativa que termina com a visita feita por José Lins do Rego na fazenda, quando estava já nos estertores de sua pretérita grandeza. Uma certeza gostosa dessa publicação eu tenho: gostam muito. Acho que até invejam, pois copiam sempre, e os picaretas nunca citam ela como fonte nas bibliografias. A lista desses plagiadores é bonita, pois vai desde o famoso pires, até a demolidora maria do piolho, passando por toda uma catrefa de outros menos badalados.

Pois, só para dar o peso da veracidade do que afirmo, foi nessa publicação em que primeiro se disse, por escrito, a razão da exótica arquitetura do velho casarão, separado pela capela, proporcionando duas residências independentes. Algo diferente de tudo quanto foi casa de morada das fazendas  fluminenses. Desafio a mostrarem texto anterior ao meu com esta informação.

Foi também nesse texto em que pela primeira vez veio à luz a informação genealógica de que as duas grandes parentelas do Vale Fluminense do Rio Paraíba do Sul, os Werneck e os Ribeiro de Avellar possuem uma origem única. Em Carnota, Portugal, freguesia onde num fim de dia fui visitar com meu filho, para sermos os primeiros desta enorme parentela, do sangue Werneck e Ribeiro Avellar a fazer uma peregrinação ancestral ao berço dessa gente tão curiosa (e por extensão briguenta). Perguntei num café ainda aberto, sobre algum qualquer resquício de lembranças deles, Avelar e Gomes Ribeiro, por lá. Não, eles não sabiam, mas ficaram surpresos e agradados, e se abriram em simpatias àquele estranho brasileiro, quando eu falei do nada, um nome de um lugar muito específico de lá, talvez um buraco... Sorte minha de genealogista saber, sai me sentindo da terra.

No livreto conto o desenrolar da fazenda, a sucessão de todos os seus proprietários de sangue Avellar, e o fim desses quadros e das alfaias da fazenda. Grande encrenca. Os quadros, eu vi numa visita que fiz com o hoteleiro Gerson Tambasco e meu distante parente, Alberto Melo Afonso, numa sexta feira, 20 de fevereiro de 1987, a justo esta família que estava proprietária destes despojos que foram a leilão esta semana. Dos quadros, um me prendeu atenção e fixou indelével na minha memória. Eu, como imaginei que nunca mais o veria, almejei muito alguma reprodução da imagem que tanto admirei. Difícil, brotou um ódio depois desta visita, e consequente publicação, que mandaram me ameaçar de processo, puliça, etc etc etc, por algo que se falou a me mostrarem os quadros, e eu achei graça, e reproduzi ipsis litteris. Moacyr e Maria Werneck de Castro, no entanto publicaram a verdade pior, (em Barões e Escravidão) e nem um pio ou ameaça. Anos atrás alguém que nem lembro bem quem me ofereceu uma cópia e eu consegui assim ter uma miniatura da referida pintura da "Tia Mariana da Gloria" Avellar. São estas as pinturas que José Lins do Rego descreveu: "as irmãs do barão, três senhoras,... caras solenes, as mantilhas em cores e o olhar sem ternura de espécie alguma". Considero os retratos dessas tias ancestrais o que de muito expressivo possui o patrimônio artístico da região e da cultura do café fluminense. Retratos de baronesas bem vestidas, de barões de casaca preta ou uniformizados pululam pelos leilões, antiquários, museus e galerias. Mas algo pintado com tão rude e ingênua realidade igual a esses retratos e que tão forte traduz a personalidade destas parentas, eu só conheço o retrato da Baronesa de Itambé, na Casa da Hera, em Vassouras e o do velho Breves, vestido à moda açoriana que vi na casa do Embaixador João Hermes.

Dona Mariana da Glória Avellar nasceu na freguesia de Santa Rita, em 1789, e foi para a fazenda do Pau Grande ainda no século XVIII, em fins de janeiro de 1795, aos 6 anos de idade, órfã do pai, o negociante Antonio Ribeiro de Avellar. Ela foi uma das ricas senhoras herdeiras da sociedade comercial da Casa Pau Grande. Uma das "manas" solteironas do Barão de Capivary. Era ela quem tomava conta da administração da casa com pulso de ferro. Como a fazenda sempre foi administrada como sociedade comercial, ela tinha seus próprios escravos, em sua maior parte nos serviços domésticos. Em seu testamento, tinha a intenção de os beneficiar monetariamente e com liberdade. Mas, infelizmente, uma tremenda encrenca e fofocada dentro da casa a irritou de tal maneira que vendeu para o irmão os seus até então escravos, que foram trabalhar no eito, no sol a sol da roça. Desta forma, os deserdou de toda e qualquer liberdade ou benefício financeiro, produzindo para esse efeito um documento (que conservo comigo em algum lugar), e que é um dos mais tristes (de fundo não oficial ou público) de que tenho visto daquele período. Tanto por imaginar o tamanho da decepção dos infelizes, as súplicas de perdão que choraram, como por saber da gente dessa também minha família, como ela devia passar de nariz em pé e olhar altaneiro, indiferente ao choro amargo e arrependido de seus até então queridos serviçais caseiros e mucamas. A história dela poderia se alongar, era a madrinha de batismo de minha trisavó, Dona Mariana Isabel Peixoto de Lacerda Werneck, a matriarca dos Furquim Werneck. Era compadre dos sobrinhos, os barões do Paty do Alferes. Com o quadro aqui na minha companhia, outras lembranças decerto virão, vou consultar meus apontamentos e me deliciar nelas.

A outra "mana", Emerenciana Rosa, chegou à fazenda aos 10 anos. Escolhi ficar com seu retrato também. Não queria, nem poderia comprar todos. Aprendi que um é unidade, dois é par, treis é coleção. Já tenho outros, então minha coleção está extensa já. Mas, vou ler depois a cópia do seu longo testamento. Ela morreu em 1836. Seu retrato devia ter grande significado afetivo. Muito real, parece que acabou de atender uma porta e está desconfiada de quem chega. Ela estava na fazenda quando Saint-Hilaire passou por lá, e não foi vista. Arredia, deve ter visto o viajante francês por uma fresta.

D. Rosa Salter 
Major José Maria Salter
A irmã Rosa, que também estava no leilão, pintada com uma touca, e agora está separada das duas manas, era a mulher do "falastrão" José Maria Salter, o "filho de mãe oculta", e não me era nada simpática à lembrança desse casal. Na fazenda existiu uma pintura desse José Maria Mendonça Mascarenhas Salter, retratado com um envelope subscritado com o nome do pai, o que decerto deve ter sido a maneira que deixou para testemunho póstero de quem era filho. Na realidade ele era  filho só do pai, e o nome da mãe ele não informou nem no testamento. Esses dois, Rosa e José Maria, indispuseram o cunhado Luíz Gomes Ribeiro, de quem descendo, empurrando para a fazenda do Guaribu, o cunhado e parente que foi o construtor da residência e administrador da sociedade Casa Pau Grande durante a menoridade do que seria o futuro Barão do Capivary.  Essa pintura do Major José Maria, vestido com o Hábito de Cristo, eu tenho a incerta impressão que vi muitos anos passados, já diminuída de tamanho num antiquário carioca. Parece figura de rótulo de vinícola lusitana. Estava na fazenda no entanto, quando foi registrada por técnicos do IPHAN. 


Fiquei com pena, no entanto, de ter visto o retrato de outra das irmãs  (acho que Maria Angélica) jogado na fazenda Pau Grande há muito tempo atráz. Por sorte guardei a foto que fiz e agora posso dizer que conheci ou vi – e vejo bem – os três retratos que impressionaram José Lins do Rego. Curioso lembrar que essas irmãs todas nasceram na casa da Rua das Violas, (atual Teófilo Otoni), no Centro do Rio. Casa que o alferes Tiradentes ia para exercer o seu "  mister de pôr e tirar dentes" – como declarou para poder escapar das garras do governo português.nos Autos da Devassa, o pai desta filharada toda. Creio elas  e suas demais irmãs, são as únicas imagens de prováveis pacientes do infeliz e precário dentista. Consta a tradição familiar que para esta declaração ser aceita, ele teria perdido parte considerável da sua fortuna e a vida, pois morreria logo após, em 7 de julho de 1794, acabrunhado por tantos insucessos. Sua morte é que fez sua viúva e filhos partirem para a fazenda em "Serra Acima", na qual consta que ele nunca teria posto os pés.

D. Antônia Ludovina Mascarenhas 
Neste leilão apareceu um retrato que está atribuído como se fosse a pintura da imagem da mãe de todos: a viúva Dona Antônia Maria da Conceição, de quem se jactavam os netos e bisnetos, numa antiga genealogia manuscrita que ganhei de Moacyr Werneck de Castro, dela ser "tia do marquês de Maricá". Erraram ao identificar a pintura: aquela é uma neta, homônima da avó, Dona Antônia Ludovina de Mascarenhas Salter, de quem tenho uma carta muito curiosa de suas primas cariocas que eram tias de Olavo Bilac. Essa Ludovina, como todo Salter, não era de brincadeiras também. Dona Antônia morreu velha, em 1828, e seu retrato nunca seria com roupas mais modernas do que as de suas filhas. Se fosse dela o retrato, eu o teria adquirido, seria algo de incrível valor, mais nem pensei em adquirir. 

É uma lástima que essa galeria tenha sido desintegrada, pois como citei acima, quando da instalação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, lá pela década de 1940, técnicos da instituição foram à fazenda e registraram toda a coleção de retratos sem os identificar – recentemente a Professora Ana Pessoa teve a gentileza de me enviar essas imagens que aqui estão em preto e branco. Nada adiantou o registro do IPHAN, muitos já nem foram mais vistos por mim a 30 anos. A iconografia de uma parentela foi realmente "arrancada dos seus", como furiosamente dizia minha parenta Maria Werneck de Castro, sobrinha materna da última dona de tudo. 

Um amigo que já viu os retratos jocosamente comentou: "Lins do Rego foi até generoso, as velhas são horrendas". Adorei!!! Quem ama o feio bonito lhe parece. Tive o privilégio de poucos, de ter sido eu quem foi buscar para o seio das paredes da parentela delas, depois de décadas e décadas, as duas ancestrais que elegi por meus próprios critérios de simpatia, espanto e admiração, como testemunhos daquele tempo cada vez mais longínquo e apagado. Sei que preservadas, no futuro serão tias ancestrais de multidões. Mais duzentos anos e a província inteira terá ligação genealógica com elas, pelo desdobrar e cruzar de pessoas e famílias. Quem viver verá....e a genealogia confirmará.