terça-feira, 23 de agosto de 2016

MANCHAS E SOMBRAS, A PARTIR DE UMA RARA EDIÇÃO DE GENEALOGIA.

Ando matutando, agora que cheguei na velhice, (60 anos!!!) que com o passar dos muitos anos, o viver acrescenta mesmo, e possibilita, o transbordar da memória dos velhos, e que realmente as lembranças surgem a partir de gatilhos os mais desbaratados possíveis, e que já que o futuro fica menor, o tudo é recordação, e o tudo fica cada vez mais sedimentado no passado, a espera somente de poder a qualquer momento retornar, antes de ser apagado para o sempre.  

Estes dias andei a fazer a colação bibliográfica de uma obra genealógica brasileira, muito estimada e rara, mas que por ser duplicata, e que por falta de espaço, sou obrigado a desfazer, mas não sem algo de pesar. É um exemplar que considero bonito e significativo, por permitir boas e vivas recordações, de fatos, historias e pessoas. Assim, não posso me furtar o prazer de deixa-lo registrado e comentado aqui. 

A bibliofilia, a amizade (ou amor) pelos livros, permite se falar de um livro quase que indefinidamente, tanto pelo seu conteúdo, como um objeto concreto, e da mesma maneira, como também, por todos os outros aspectos que o podem permear, o seu autor, suas histórias, sua edição, e até seus possuidores, vendedores e até furtadores.  

Vamos lá; a obra em questão trata-se da Genealogia Mineira, em quatro volumes, publicados entre 1937 e 1939, em Belo Horizonte, pela Imprensa Oficial de Minas Gerais. O autor é o advogado, e famoso latinista, o Dr. Arthur Vieira de Rezende e Silva, nascido em 1868,  em Cataguases, onde seus ancestrais foram os fundadores da hoje importante cidade da Mata Mineira, surgida a partir do antigo Arraial da Meia Pataca. 

O título de sua obra é no meu entender, abrangente demais, posto que passa a ideia que ela abarcaria em seu conteúdo genealógico, todas as famílias de Minas Gerais. Arthur Rezende a denominou Genealogia Mineira, mas a realidade é que o enfoque da sua obra é somente sobre as famílias de seus avós e da sua esposa. Restrito. Por mim o nome mais acertado seria Genealogia Cataguasense, o que por soar estranho aos de fora da antiga Meia Pataca, fosse talvez esse, o exato motivo porque ele decidiu ser melhor o titulo Genealogia Mineira.

A região sul de Minas Gerais foi em eras muito remotas, também povoada por emigrantes açorianos. Mas infelizmente, ao contrário da presença marcante e nunca esquecida dos ilhéus em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a mesma presença e importância do elemento açoriano na cultura e povoamento nas antigas províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro não é nada considerada. Está escondida, não sabida, esmaecida nas páginas dos velhos livros paroquiais. Da mesma forma, a herança arquitetônica sendo paulatinamente destruída. E mesmo  a cultural sendo ignorada pela modernidade idiota das modas e costumes do século. Mas nem adianta falar, o saber acadêmico, ligeiro e superficial, que despreza a genealogia como fonte de conhecimento, já cristalizou que açorianos só existiram no sul do Brasil. Mas a verdade é que pululam na história do ouro mineiro e do café fluminense os apelidos familiares, impossíveis de não serem ligados a diáspora açoriana pelo Brasil e pelo mundo; Dutra, Goulart, Jordão, Silveira, Brum, Lacerda, Rosa, Fraga, Avelar, Coelho, Rodrigues Alves e tantos outros e outros, que nem vale a pena lembrar.... 

A saga familiar de Arthur Resende inicia na freguesia das Angústias, na cidade da Horta, na ilha do Faial, de onde saíram as famosas Ilhoas, antepassadas de todo o sul mineiro. Pois foi lá nos Açores que ouvi o genealogista da terra comentar assombrado, que estas mulheres "foram as que saíram das Angústias, somente com " os panos de bunda", e se lançaram na aventura do Atlântico, para em terras brasileiras vencerem, e seus filhos e netos serem venturosos latifundiários, proprietários de terras mais extensas que o tamanho da própria ilha do Faial, onde a terra é exígua e disputada, toda demarcada  e retalhada com as características muretas de pedras vulcânicas. 

Essas corajosas ilhoas já eram lendárias desde do século XVIII, porque foram antepassadas da maior quantidade de gente conhecida e de sucesso desde então na província onde se estabeleceram.  A maior constelação de barões, viscondes, condes e marqueses do império (e até fora do Brasil!!!) reunidos numa parentela brasileira, foram os descendentes destas senhoras. Já vi genealogistas afirmarem que eram os Lemes paulistas que tinham esse rebanho enorme de titulares, mas que nada, qual o quê!, eu acho que são mesmo as ilhoas as que tem essa posição. 

Primeiro texto onde apareceram citações a esse grande clã, foram nas "Minhas Recordações" de Francisco de Paula Ferreira de Resende. Uma dessas ilhoas, foi a avó do Marques de Valença, figura de vulto dos primórdios do Brasil Imperial. Genealogia não desperta atenção se não houver um figurão que seja a pedra de toque para animar o bando periférico de toda uma grande e anônima gama de parentes. Então tudo começou ali nas "Recordações", até que veio depois o Dr. Arthur Rezende, com seu trabalho de folego, numa época sem internet e poucos telefones.  Um grande trabalho. Ele fez a história das Ilhoas, não mais como citação ou recordação, mas como genealogia, e publicou grande parte desta parentela admirável, expressiva social, financeira, e culturalmente como poucas o são no Brasil (e eu afirmo como verdade incontestável, até por não descender delas). 

Depois de publicada a obra de Arthur Rezende, surgiram outros genealogistas dedicados ao assunto; José Guimarães em Campanha e Ary Florenzano em Lavras. Até brigaram por causa disso. Durante muitos anos e anos, foram dúvidas e dúvidas das tais irmãs ou primas ilhoas. Quem era quem, e como é que era tudo....Todos os pesquisadores eram primos, mas foi finalmente, a pesquisadora paulista Marta Amato, que fez a pesquisa nos livros eclesiásticos açorianos, e pacificou de forma definitiva o assunto. 

Por tudo isso, livros e livros e folhetos se publicaram sobre essa assombrosa parentela, que incluí também o famoso Januário Sete Orelhas, um facínora mineiro. Mais de vinte publicações já existem na prateleira sobre as ilhoas. Não se pode então mais guardar duas coleções... 


Mas é esta duplicata que vai embora, um exemplar simbólico, que está em perfeito estado, é o que tem uma dedicatória de Arthur Rezende para o Ary Florenzano, datada de São Lourenço, 9 de maio de 1938. Até consigo imaginar o encontro dos dois genealogistas em São Lourenço, e a deliciosa conversa que deve ter ocorrido, (na portaria de um hotel, ou nas alamedas do Parque das Águas ?) naqueles fins da década de 1930. Arthur Rezende tinha 70 anos e Florenzano tinha 44 anos, e publicaria logo depois, em 1940, na Revista do Instituto Genealógico Brasileiro,boa parte de suas pesquisas, inclusive sobre os Taveira de Carrancas, também descendentes das tais matronas.  
  
Mas é essa gente, exatamente os Vieira de Rezende, que afloraram na minha memória, a partir do livro em questão, os da fazenda do Rochedo. Gente muito culta, respeitada e educada.  E explicarei porque só estes os do Rochedo estão nestas minhas boas lembranças; a madrinha de minha mãe era sobrinha paterna do Dr. Arthur Rezende, o genealogista, posto ter sido colega de minha avó Dora, no Colégio do Sion de Petrópolis, no inicio do século XX. Lá se vão cem anos passados. Minha avó saiu do colégio em 1917.  Era essa uma irmandade Rezende do Sion, as filhas do Dr. Affonso Vieira de Rezende, (precocemente viúvo, advogado e politico) e mais também lá estavam as primas, filhas dos irmãos Arthur e Astolfo. Eu pela vida afora, no entanto, já vi outros Vieira de Resende, e nada igual ou próximo a esses....afinal, sobrenome e o sangue não dá qualidade igual a toda uma grande rede de parentes. Tem laranjeira que tem frutas saborosas e outras bichadas ao mesmo tempo.....

Na fotografia do batizado de minha mãe, aparece o Dr. Affonso de Rezende, o então proprietário da
1-Dr. Affonso de Rezende, 2 -Ofélia de Rezende 3 -Laura Werneck
4 - Glorinha Correa (Lamego)  5 - Lydia Menezes 6 - Levy Menezes
7 e 8 - Salvador e Dora Menezes. 1923
famosa e vetusta fazenda do Rochedo, em Glória de Cataguases, o berço da família. Ouvi falar desta fazenda desde sempre. Porque fora a temporada que minha avó e suas irmãs foram passar lá, fugidas da gripe espanhola, era do Rochedo, de onde vinha, a madrinha de minha mãe, Ofélia Vieira de Resende, para visitar minha avó Dora, com verdadeira amizade e consideração. E como é somente a morte que sela e confirma as amizades, a de Ofélia acompanhou minha avó até o túmulo. Naquele dia triste de minha família, lembro dela pesarosa, carinhosa e presente ao nosso lado. Minha avó sempre foi uma mulher muito além de sua época, e sem lhe fazer favor algum, posso dizer que, mesmo que fosse também herdeira do gênio difícil de nossa família, ela era porém sobejadamente dotada de inteligência invulgar. E foi o pai de Ofélia, o Dr. Affonso Vieira de Rezende, quem num elogio perfeito e gentil, afirmou que " a Dora sozinha, entretêm um salão de conversação sobre todos os assuntos". Eu aqui com meus botões, só posso agradecer a memória do Dr. Afonso Vieira de Rezende, porque naquela época de mulheres caladas,emburrecidas e pouco preparadas, ele foi quem teve a grandeza de deixar para posteridade, (dito por alguém, da estatura cultural e moral dele, já que seu nome era uma legenda em Minas), um reconhecimento tão simpático da boa impressão que minha avó causava.

E toda vez que Ofélia vinha visitar minha avó em Icaraí, quando em temporadas no Rio de Janeiro, vinda do Rochedo, eu era quem, acabada a visita, a acompanhava até a Praça XV no Rio de Janeiro, para embarca-la com segurança num táxi. Segurava no seu braço para pular do flutuante para a barca, e sentados eu já puxava os assuntos, e ai Ofélia contava da fazenda, dos quadros dos ancestrais pintados em Paris: "mandaram a foto, um pedaço da roupa, e o artista pintou o Major Vieira que era moreno, com os olhos claros e alourado feito um alemão", falava das maçanetas das portas "de cristal, iguais a da Quinta da Boa Vista", do quarto de retratos dos mortos, da biblioteca, do administrador, do porão, das obras de conservação... Contava de um escravo que havia estudado pintura na Corte, e decorou a fazenda. Das mobílias feitas pelos escravos. Falava do tio genealogista, do irmão poeta modernista Enrique de Resende e até do Pedro Nava. As vezes ela aparecia com uma ou duas das outras irmãs. A conversa animada era o Colégio Sion.  Era curioso de ver aquilo, as velhotas muito educadas, se denominavam "antigas do Sion", eram falantes, risonhas, muito simpáticas. Falavam das colegas, das freiras muito velhas, antigas mestras que iam a morrer e das que eram lembranças; nomes que ficaram familiares, "Laura Ottoni", "Mère Claver", "Mère Angelina", "Mère Angélica" "Soeur Marilda", e colegas, colegas e colegas: "Morreu fulana.." Os lanches eram sempre melhorados e gostosos, minha mãe se desdobrava na sua simplicidade, com uma toalha limpa, saída da gaveta, e o aparelho de chá de seu casamento, já desfalcado, mas só usado para as visitas. E o pão quentinho, da fornada da tarde, da padaria São Bento, ali na esquina.  Acho que talvez não fosse muito da educação que elas todas receberam, ter crianças a mesa falando, mas nesses lanches sentavam crianças, uma algazarra na mesa, junto com a senhoras, e todos falavam, conversavam, riam, elas bebiam chá, comiam bolo, biscoitos, parcimoniosas, e o queijo que Ofélia sempre trazia, e acabava na mesma hora na pança da criançada.  Que boas lembranças da minha infância!!! Ofélia sempre dizia e escrevia para minha mãe; "minha afilhada precisa ir passar as férias com os filhos no Rochedo". E para mim, ela sempre tinha um convite diretamente do coração agradecido, com o meninote que lhe acompanhava na barca, e na praça XV, era sempre junto do agradecimento do cuidado de acompanha-la; "venha nas suas férias, venha a fazenda...". Nunca fui, mas parece que fui também, tão nítidas são as boas lembranças daquelas conversas e o carinho do convite.

Ofélia Rezende, Esther & Dora Werneck,
Eponina Rezende e Amadeu Machado,
o sombra negra. 

Ofélia, que morreu centenária, era professora amada, de francês, no ginásio de sua cidade. E por falta de sorte, tinha sido (mal) casada com um amigo (picareta) de meu avô Menezes. As vezes nas conversas apareciam notícias dessa sombra negra, até que um dia Ofélia disse que estava viúva. O dito fulano, tinha falecido em Nanuque, (que nome engraçado!!! foi o que pensei e registrei isso quando ouvi isso, la naqueles idos da década de 1960) se não me falha a memória. Conhecia o tal marido, o português Amadeu Cesar Machado, das fotos antigas. Mas, já era isso tudo passado, passado delas, já naquele tempo, e hoje considero incrível ainda lembrar a partir do manuseio da Genealogia Mineira, destes fatos e personagens que fizeram parte de minha infância e mocidade por ouvir, e hoje cabem dentro das minhas memórias e do meu passado. Uma vida realmente contém muitas outras, e também as suas memórias. 


Vou me desfazer deste exemplar, com a dedicatória do Rezende ao Florenzano, mas fico com o outro, que pertenceu a Adalberto Cabral de Mello. Comprei de sua viúva, a Dona Cristina. Mas a primeira vez que vi a Genealogia Mineira, foi este mesmo exemplar que comigo fica, vi na casa e nas mãos do Cabral de Mello, na rua Pinheiro da Cunha, alto da Tijuca, antiga Rua da Cascata. E lembro perfeitamente que pedi emprestado, para mostrar a minha avó, a família de sua comadre. Pois o Cabral, naquela sua grandeza, emprestou na mesma hora, mas abriu o volume da família Rezende e me contou com aquele seu timbre de voz tão característico : "O Arthur Rezende, eu conheci, morava aqui na rua, mais acima, (a rua é uma ladeira) e numa enchente que houve, depois de um temporal de verão, e os volumes da genealogia mineira estavam no porão que imundou, foram maior parte perdidos, os que salvaram ficaram com manchas do molhado". Quase todos os poucos exemplares que eu tenho visto, estão manchados. A mancha de um livro, eu sei o porque, e ela me lembra o Cabral de Mello, e uma rua carioca chamada da Cascata, e que um dia virou cascata de verdade. 

Manchas então são também lembranças. Agradáveis. Os homens todos, um dia viram sombras. E existem estas sombras. Acolhedoras. Os livros sobrevivem aos homens. Somos só guardiões, mas como as memórias morrem e se dissipam, que estas minhas manchas e sombras  recordadas a partir da obra de Arthur Rezende, fiquem aqui. Alguém há de achar graça e ouvir algum eco delas em algum dia. Questão de sintonia.