terça-feira, 23 de agosto de 2016

MANCHAS E SOMBRAS, A PARTIR DE UMA RARA EDIÇÃO DE GENEALOGIA.

Ando matutando, agora que cheguei na velhice, (60 anos!!!) que com o passar dos muitos anos, o viver acrescenta mesmo, e possibilita, o transbordar da memória dos velhos, e que realmente as lembranças surgem a partir de gatilhos os mais desbaratados possíveis, e que já que o futuro fica menor, o tudo é recordação, e o tudo fica cada vez mais sedimentado no passado, a espera somente de poder a qualquer momento retornar, antes de ser apagado para o sempre.  

Estes dias andei a fazer a colação bibliográfica de uma obra genealógica brasileira, muito estimada e rara, mas que por ser duplicata, e que por falta de espaço, sou obrigado a desfazer, mas não sem algo de pesar. É um exemplar que considero bonito e significativo, por permitir boas e vivas recordações, de fatos, historias e pessoas. Assim, não posso me furtar o prazer de deixa-lo registrado e comentado aqui. 

A bibliofilia, a amizade (ou amor) pelos livros, permite se falar de um livro quase que indefinidamente, tanto pelo seu conteúdo, como um objeto concreto, e da mesma maneira, como também, por todos os outros aspectos que o podem permear, o seu autor, suas histórias, sua edição, e até seus possuidores, vendedores e até furtadores.  

Vamos lá; a obra em questão trata-se da Genealogia Mineira, em quatro volumes, publicados entre 1937 e 1939, em Belo Horizonte, pela Imprensa Oficial de Minas Gerais. O autor é o advogado, e famoso latinista, o Dr. Arthur Vieira de Rezende e Silva, nascido em 1868,  em Cataguases, onde seus ancestrais foram os fundadores da hoje importante cidade da Mata Mineira, surgida a partir do antigo Arraial da Meia Pataca. 

O título de sua obra é no meu entender, abrangente demais, posto que passa a ideia que ela abarcaria em seu conteúdo genealógico, todas as famílias de Minas Gerais. Arthur Rezende a denominou Genealogia Mineira, mas a realidade é que o enfoque da sua obra é somente sobre as famílias de seus avós e da sua esposa. Restrito. Por mim o nome mais acertado seria Genealogia Cataguasense, o que por soar estranho aos de fora da antiga Meia Pataca, fosse talvez esse, o exato motivo porque ele decidiu ser melhor o titulo Genealogia Mineira.

A região sul de Minas Gerais foi em eras muito remotas, também povoada por emigrantes açorianos. Mas infelizmente, ao contrário da presença marcante e nunca esquecida dos ilhéus em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a mesma presença e importância do elemento açoriano na cultura e povoamento nas antigas províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro não é nada considerada. Está escondida, não sabida, esmaecida nas páginas dos velhos livros paroquiais. Da mesma forma, a herança arquitetônica sendo paulatinamente destruída. E mesmo  a cultural sendo ignorada pela modernidade idiota das modas e costumes do século. Mas nem adianta falar, o saber acadêmico, ligeiro e superficial, que despreza a genealogia como fonte de conhecimento, já cristalizou que açorianos só existiram no sul do Brasil. Mas a verdade é que pululam na história do ouro mineiro e do café fluminense os apelidos familiares, impossíveis de não serem ligados a diáspora açoriana pelo Brasil e pelo mundo; Dutra, Goulart, Jordão, Silveira, Brum, Lacerda, Rosa, Fraga, Avelar, Coelho, Rodrigues Alves e tantos outros e outros, que nem vale a pena lembrar.... 

A saga familiar de Arthur Resende inicia na freguesia das Angústias, na cidade da Horta, na ilha do Faial, de onde saíram as famosas Ilhoas, antepassadas de todo o sul mineiro. Pois foi lá nos Açores que ouvi o genealogista da terra comentar assombrado, que estas mulheres "foram as que saíram das Angústias, somente com " os panos de bunda", e se lançaram na aventura do Atlântico, para em terras brasileiras vencerem, e seus filhos e netos serem venturosos latifundiários, proprietários de terras mais extensas que o tamanho da própria ilha do Faial, onde a terra é exígua e disputada, toda demarcada  e retalhada com as características muretas de pedras vulcânicas. 

Essas corajosas ilhoas já eram lendárias desde do século XVIII, porque foram antepassadas da maior quantidade de gente conhecida e de sucesso desde então na província onde se estabeleceram.  A maior constelação de barões, viscondes, condes e marqueses do império (e até fora do Brasil!!!) reunidos numa parentela brasileira, foram os descendentes destas senhoras. Já vi genealogistas afirmarem que eram os Lemes paulistas que tinham esse rebanho enorme de titulares, mas que nada, qual o quê!, eu acho que são mesmo as ilhoas as que tem essa posição. 

Primeiro texto onde apareceram citações a esse grande clã, foram nas "Minhas Recordações" de Francisco de Paula Ferreira de Resende. Uma dessas ilhoas, foi a avó do Marques de Valença, figura de vulto dos primórdios do Brasil Imperial. Genealogia não desperta atenção se não houver um figurão que seja a pedra de toque para animar o bando periférico de toda uma grande e anônima gama de parentes. Então tudo começou ali nas "Recordações", até que veio depois o Dr. Arthur Rezende, com seu trabalho de folego, numa época sem internet e poucos telefones.  Um grande trabalho. Ele fez a história das Ilhoas, não mais como citação ou recordação, mas como genealogia, e publicou grande parte desta parentela admirável, expressiva social, financeira, e culturalmente como poucas o são no Brasil (e eu afirmo como verdade incontestável, até por não descender delas). 

Depois de publicada a obra de Arthur Rezende, surgiram outros genealogistas dedicados ao assunto; José Guimarães em Campanha e Ary Florenzano em Lavras. Até brigaram por causa disso. Durante muitos anos e anos, foram dúvidas e dúvidas das tais irmãs ou primas ilhoas. Quem era quem, e como é que era tudo....Todos os pesquisadores eram primos, mas foi finalmente, a pesquisadora paulista Marta Amato, que fez a pesquisa nos livros eclesiásticos açorianos, e pacificou de forma definitiva o assunto. 

Por tudo isso, livros e livros e folhetos se publicaram sobre essa assombrosa parentela, que incluí também o famoso Januário Sete Orelhas, um facínora mineiro. Mais de vinte publicações já existem na prateleira sobre as ilhoas. Não se pode então mais guardar duas coleções... 


Mas é esta duplicata que vai embora, um exemplar simbólico, que está em perfeito estado, é o que tem uma dedicatória de Arthur Rezende para o Ary Florenzano, datada de São Lourenço, 9 de maio de 1938. Até consigo imaginar o encontro dos dois genealogistas em São Lourenço, e a deliciosa conversa que deve ter ocorrido, (na portaria de um hotel, ou nas alamedas do Parque das Águas ?) naqueles fins da década de 1930. Arthur Rezende tinha 70 anos e Florenzano tinha 44 anos, e publicaria logo depois, em 1940, na Revista do Instituto Genealógico Brasileiro,boa parte de suas pesquisas, inclusive sobre os Taveira de Carrancas, também descendentes das tais matronas.  
  
Mas é essa gente, exatamente os Vieira de Rezende, que afloraram na minha memória, a partir do livro em questão, os da fazenda do Rochedo. Gente muito culta, respeitada e educada.  E explicarei porque só estes os do Rochedo estão nestas minhas boas lembranças; a madrinha de minha mãe era sobrinha paterna do Dr. Arthur Rezende, o genealogista, posto ter sido colega de minha avó Dora, no Colégio do Sion de Petrópolis, no inicio do século XX. Lá se vão cem anos passados. Minha avó saiu do colégio em 1917.  Era essa uma irmandade Rezende do Sion, as filhas do Dr. Affonso Vieira de Rezende, (precocemente viúvo, advogado e politico) e mais também lá estavam as primas, filhas dos irmãos Arthur e Astolfo. Eu pela vida afora, no entanto, já vi outros Vieira de Resende, e nada igual ou próximo a esses....afinal, sobrenome e o sangue não dá qualidade igual a toda uma grande rede de parentes. Tem laranjeira que tem frutas saborosas e outras bichadas ao mesmo tempo.....

Na fotografia do batizado de minha mãe, aparece o Dr. Affonso de Rezende, o então proprietário da
1-Dr. Affonso de Rezende, 2 -Ofélia de Rezende 3 -Laura Werneck
4 - Glorinha Correa (Lamego)  5 - Lydia Menezes 6 - Levy Menezes
7 e 8 - Salvador e Dora Menezes. 1923
famosa e vetusta fazenda do Rochedo, em Glória de Cataguases, o berço da família. Ouvi falar desta fazenda desde sempre. Porque fora a temporada que minha avó e suas irmãs foram passar lá, fugidas da gripe espanhola, era do Rochedo, de onde vinha, a madrinha de minha mãe, Ofélia Vieira de Resende, para visitar minha avó Dora, com verdadeira amizade e consideração. E como é somente a morte que sela e confirma as amizades, a de Ofélia acompanhou minha avó até o túmulo. Naquele dia triste de minha família, lembro dela pesarosa, carinhosa e presente ao nosso lado. Minha avó sempre foi uma mulher muito além de sua época, e sem lhe fazer favor algum, posso dizer que, mesmo que fosse também herdeira do gênio difícil de nossa família, ela era porém sobejadamente dotada de inteligência invulgar. E foi o pai de Ofélia, o Dr. Affonso Vieira de Rezende, quem num elogio perfeito e gentil, afirmou que " a Dora sozinha, entretêm um salão de conversação sobre todos os assuntos". Eu aqui com meus botões, só posso agradecer a memória do Dr. Afonso Vieira de Rezende, porque naquela época de mulheres caladas,emburrecidas e pouco preparadas, ele foi quem teve a grandeza de deixar para posteridade, (dito por alguém, da estatura cultural e moral dele, já que seu nome era uma legenda em Minas), um reconhecimento tão simpático da boa impressão que minha avó causava.

E toda vez que Ofélia vinha visitar minha avó em Icaraí, quando em temporadas no Rio de Janeiro, vinda do Rochedo, eu era quem, acabada a visita, a acompanhava até a Praça XV no Rio de Janeiro, para embarca-la com segurança num táxi. Segurava no seu braço para pular do flutuante para a barca, e sentados eu já puxava os assuntos, e ai Ofélia contava da fazenda, dos quadros dos ancestrais pintados em Paris: "mandaram a foto, um pedaço da roupa, e o artista pintou o Major Vieira que era moreno, com os olhos claros e alourado feito um alemão", falava das maçanetas das portas "de cristal, iguais a da Quinta da Boa Vista", do quarto de retratos dos mortos, da biblioteca, do administrador, do porão, das obras de conservação... Contava de um escravo que havia estudado pintura na Corte, e decorou a fazenda. Das mobílias feitas pelos escravos. Falava do tio genealogista, do irmão poeta modernista Enrique de Resende e até do Pedro Nava. As vezes ela aparecia com uma ou duas das outras irmãs. A conversa animada era o Colégio Sion.  Era curioso de ver aquilo, as velhotas muito educadas, se denominavam "antigas do Sion", eram falantes, risonhas, muito simpáticas. Falavam das colegas, das freiras muito velhas, antigas mestras que iam a morrer e das que eram lembranças; nomes que ficaram familiares, "Laura Ottoni", "Mère Claver", "Mère Angelina", "Mère Angélica" "Soeur Marilda", e colegas, colegas e colegas: "Morreu fulana.." Os lanches eram sempre melhorados e gostosos, minha mãe se desdobrava na sua simplicidade, com uma toalha limpa, saída da gaveta, e o aparelho de chá de seu casamento, já desfalcado, mas só usado para as visitas. E o pão quentinho, da fornada da tarde, da padaria São Bento, ali na esquina.  Acho que talvez não fosse muito da educação que elas todas receberam, ter crianças a mesa falando, mas nesses lanches sentavam crianças, uma algazarra na mesa, junto com a senhoras, e todos falavam, conversavam, riam, elas bebiam chá, comiam bolo, biscoitos, parcimoniosas, e o queijo que Ofélia sempre trazia, e acabava na mesma hora na pança da criançada.  Que boas lembranças da minha infância!!! Ofélia sempre dizia e escrevia para minha mãe; "minha afilhada precisa ir passar as férias com os filhos no Rochedo". E para mim, ela sempre tinha um convite diretamente do coração agradecido, com o meninote que lhe acompanhava na barca, e na praça XV, era sempre junto do agradecimento do cuidado de acompanha-la; "venha nas suas férias, venha a fazenda...". Nunca fui, mas parece que fui também, tão nítidas são as boas lembranças daquelas conversas e o carinho do convite.

Ofélia Rezende, Esther & Dora Werneck,
Eponina Rezende e Amadeu Machado,
o sombra negra. 

Ofélia, que morreu centenária, era professora amada, de francês, no ginásio de sua cidade. E por falta de sorte, tinha sido (mal) casada com um amigo (picareta) de meu avô Menezes. As vezes nas conversas apareciam notícias dessa sombra negra, até que um dia Ofélia disse que estava viúva. O dito fulano, tinha falecido em Nanuque, (que nome engraçado!!! foi o que pensei e registrei isso quando ouvi isso, la naqueles idos da década de 1960) se não me falha a memória. Conhecia o tal marido, o português Amadeu Cesar Machado, das fotos antigas. Mas, já era isso tudo passado, passado delas, já naquele tempo, e hoje considero incrível ainda lembrar a partir do manuseio da Genealogia Mineira, destes fatos e personagens que fizeram parte de minha infância e mocidade por ouvir, e hoje cabem dentro das minhas memórias e do meu passado. Uma vida realmente contém muitas outras, e também as suas memórias. 


Vou me desfazer deste exemplar, com a dedicatória do Rezende ao Florenzano, mas fico com o outro, que pertenceu a Adalberto Cabral de Mello. Comprei de sua viúva, a Dona Cristina. Mas a primeira vez que vi a Genealogia Mineira, foi este mesmo exemplar que comigo fica, vi na casa e nas mãos do Cabral de Mello, na rua Pinheiro da Cunha, alto da Tijuca, antiga Rua da Cascata. E lembro perfeitamente que pedi emprestado, para mostrar a minha avó, a família de sua comadre. Pois o Cabral, naquela sua grandeza, emprestou na mesma hora, mas abriu o volume da família Rezende e me contou com aquele seu timbre de voz tão característico : "O Arthur Rezende, eu conheci, morava aqui na rua, mais acima, (a rua é uma ladeira) e numa enchente que houve, depois de um temporal de verão, e os volumes da genealogia mineira estavam no porão que imundou, foram maior parte perdidos, os que salvaram ficaram com manchas do molhado". Quase todos os poucos exemplares que eu tenho visto, estão manchados. A mancha de um livro, eu sei o porque, e ela me lembra o Cabral de Mello, e uma rua carioca chamada da Cascata, e que um dia virou cascata de verdade. 

Manchas então são também lembranças. Agradáveis. Os homens todos, um dia viram sombras. E existem estas sombras. Acolhedoras. Os livros sobrevivem aos homens. Somos só guardiões, mas como as memórias morrem e se dissipam, que estas minhas manchas e sombras  recordadas a partir da obra de Arthur Rezende, fiquem aqui. Alguém há de achar graça e ouvir algum eco delas em algum dia. Questão de sintonia. 

 


















domingo, 28 de fevereiro de 2016

"FAZENDA TRÊS SALTOS: QUANDO O VALE CONTA HISTORIAS". OU UM LIVRO GATILHO PARA MINHAS LEMBRANÇAS E OUTRAS ENGRAÇADAS HISTÓRIAS.

Nestes dias que correm, um amigo bibliófilo ligou avisando: "publicaram um livro sobre uma fazenda dos Breves, e tem seu nome na bibliografia, algo que escreveu e está na internet". Pensei com meus botões; lá vem bomba. Mas até que desta vez, não. 

Pela primeira vez um livro destes sobre fazendas cita um texto meu ou pequisa minha fazendo a referência correta. Não sou historiador, nem tenho pretensões a nada, mas a lista de canalhas que tem o hábito desta falta, ou falha intelectual é enorme, e um dia eu vou discorrer com muito prazer, um a um destes casos. Principalmente os oriundos do meio acadêmico vassourense ou dos sobre as fazendas de café. Tem nomes ilustres nesse costume nefasto. 

Os Breves, os antigos proprietários da Fazenda Três Saltos, de Piraí, formaram uma das mais antigas, ricas e estranhas parentelas fluminenses. Merecem mesmo muitos estudos e livros. Souberam ganhar dinheiro com o suor e sangue dos negros, e souberam gastar o dinheiro também. 

Quando eu fui pesquisar meus costados de Piraí, ( arraial dos Breves ), acabei tendo contato epistolar com o famoso cronista da família, o Padre Reynato Breves. Mas logo percebi que ele não poderia me ajudar muito, porque o interesse dele, era obviamente só Breves. Mas foi muito simpático e acolhedor, por meio das cartas que trocamos e tenho guardadas em meu arquivo.

Um pouco acostumado com a bibliografia e iconografia fluminense, acabei comentando com o Padre Breves, da beleza de umas pinturas de antepassados seus, ancestrais desses fazendeiros de origem açoriana, que se perpetuaram na história, pela quantidade de escravos que traficaram, comerciaram e possuíram em suas incontáveis fazendas. Mas fiquei algo surpreso na resposta do Padre, já que também surpreso, me informava nunca ter visto uma tela, que estava reproduzida justo no Anuário do Museu Imperial. Eu providenciei uma cópia para o Padre, e assim fomos trocando cartas, até que tempos depois recebi o grosso tijolo que ele publicou sobre sua família, iniciada nos nobilíssimos Condes de Breves.

Tenho satisfação de ter conhecido epistolarmente o padre Breves, foi um homem infeliz deslocado dentro da igreja católica. Hoje talvez fosse um herói. No dia que lhe lembrarem a vida rocambolesca, decerto será um mito, já que um maldito bispo lhe caçou o sacerdócio e publicou no jornal O Globo, que ele vivia maritalmente com o sacristão. E foi assim, que suspenso das ordens, fundou a sua igreja independente de Santa Teresinha, na Barra do Piraí. Morreu precocemente num acidante automobilístico. Para a genealogia da região, sua morte foi irreparável perda. 

Mas tive imenso gosto de ver neste livro da Fazenda Três Saltos, publicados por Mary del Priore e Eduardo Schnoor, os tais retratos pintados dos Breves, que integram a coleção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 

 São belas pinturas, retratos enigmáticos, embora toscos. Nada pode ser mais estranho e feio por exemplo; que a fisionomia da senhora de toucado e óculos. Tão feia que choca, e acaba por ficar belíssima pintura, pela realidade estranha que documenta. Flagrante vivo do passado. Quase que se pode sentir o cheiro que deviam exalar, nessas roupas endomingadas e suadas. Excelente poder ver as telas coloridas agora no livro da Fazenda Três Saltos. Eu os conhecia sem colorido, publicados por Alberto Lamego, na sua obra O Homem e a Serra. E disso não passava  o meu conhecimento desse assunto; pinturas, retratos e Breves. Mas sabia que pertenciam ao cineasta Mario Peixoto, já que o poeta Alexei Bueno, amigo deste último, tinha visto na casa do próprio Mario Peixoto, em Mangaratiba, que segundo ele Alexei, tinha semelhança notável com o ancestral, o tal velho Joaca, o Rei do Café.

Em dezembro de 1995, ou inicio de janeiro de 1996 eu recebi no meu trabalho, a Livraria Universal, uma telefonema do Embaixador João Hermes de Araujo, (casado com uma Breves Graúda).  O embaixador me era grato: o proprietário da livraria, o empresário Joaquim Monteiro de Carvalho, presidente do Grupo Monteiro Aranha, havia adquirido um belo e antigo album de fotografias, pertencente ao Conde Haritoff, marido de uma Breves, e por minha intermediação, o Dr. Joaquim emprestou o album ao Embaixador, e acabou na sua admirável generosidade, por oferecer de presente o album ao embaixador.

Na residência do Embaixador, eu tinha visto tempos antes, o famoso retrato do José de Souza Breves, vestido com roupas tipicas de açoriano. Era um outro famoso quadro da iconografia dos Breves, tela que tinha pertencido ao museu particular David Carneiro, de Curitiba, e que então, estava em sua coleção particular. O Embaixador achava que este retrato, era de autoria do Jean Batista Debret, e para confirmar a assertiva, mostrava uma gravura da "Voyage Pittoresque et Historique au Bresil",  do Debret, onde está  um fazendeiro que sapeca furibundo com um chicote, um infeliz negro imobilizado com um pau de guatambu. Não havia muito como se negar ser o retrato do fazendeiro Breves e o fazendeiro da gravura, a mesma pessoa.

O embaixador João Hermes nessa conversa, por telefone, fala de diversos assuntos antigos, genealógicos, porque sempre teve um bom papo, e quase ao fim da conversa, ele diz, que tinha ficado chocado, "um parente distante da minha mulher", que se interessava pela história dos Breves, tinha ido num antiquário em Copacabana, e visto a venda todos os tais quadros, que tinham pertencido ao Mário Peixoto, postos lá a venda, por um seu herdeiro ou empregado", (chamado Saulo, Menelau ou Argeu, não me lembro....bem). 

O Embaixador João Hermes, proprietário de uma espaçosa fazenda antiga dos Breves, na região de Volta Redonda, estranhamente disse, para fechar o relato, que não havia lugar para tantos quadros, mas tinha muita pena, de não poder fazer "absolutamente nada", e que assim, os retratos se dispersariam e perderiam. Eu na mesma hora, de pronto falei: "o senhor, que é vice-presidente do Instituto Histórico, e já que o tesoureiro lá é o Victorino Chermont de Miranda, que tem um grande interesse em iconografia antiga do império, fale com ele, que o Instituto compra tudo. Esses quadros tem alto valor histórico,  extrapolam o interesse familiar, e assim ficam juntos e preservadas". O ovo de Colombo foi posto por mim em pé, e o embaixador exclamou: "Que boa ideia, é verdade, falarei com o Victorino" e desligou o telefone. Esta foi toda minha participação no caso, e mais eu não soube, nem o embaixador deu um qualquer retorno do andamento do que falara, até que em um outro dia, um outro camarada da genealogia, que era então, também casado com uma Breves (Miúda), entra na livraria e fala: "Roberto, eu ia chegando no IHGB, e estava o Dr. Victorino Chermont desembarcando todos os quadros dos Breves que estavam a venda em um antiquário de Copacabana. Mas ele pediu que não falasse nada disso com ninguém, especialmente com você (sic) Roberto, pois é um segredo"; (uma surpresa para o aniversário ou uma efeméride qualquer do Instituto).

Esse é o Brasil, e os homens cultos de nossa terra. A intelectualidade nativa. As penas dos pavões , até as menores, e menos coloridas, rodam de rabo em rabo de urubus, e os pavões coitados, que já tem as canelas horrorosas, estão sempre com os rabos depenados, iguais frangos de geladeira de supermercados.... Em compensação, urubus lindos....


Ora bolas, eu não tinha nem visto os tais quadros, mais a sugestão da aquisição pelo IHGB foi minha, ao embaixador, não tinha porque esconderem a compra. Saiu o camarada da livraria, e entrou o autor do livro agora publicado, sobre a Fazenda Tres Saltos, o historiador Eduardo Schnoor, por isso essas lembranças. Eu, já por ser grande o segredo do polichinelo, informei logo da compra dos quadros dos Breves pelo IHGB.  Foi o que bastou para Eduardo Schnoor pegar o telefone e imediatamente informar ao jornalista Elio Gaspari do acontecido. O jornalista parecia ter interesses também na história dos Breves. O jornalista me ligou e fez umas perguntas. Ficou de ligar mais outra vez sobre o assunto, e não aconteceu. 


Assim foi o porque, que no domingo 14 de janeiro de 1996, na hora do meu almoço, recebo uma chamada telefônica, e do outro lado da linha, uma mulher aflita e histérica, perguntava aos gritos, como se mortalmente ferida, se eu era o (famigerado) Roberto Menezes de Moraes? Ofegante, perguntava se tinha sido eu mesmo que tinha "descoberto" os quadros dos Breves num antiquário de Copacabana???? Se eu confirmava isso....   Um mal estar, naquela tarde calorenta, no meio de um bom almoço.... ela passou o telefone ao marido, para ele vociferar bravo, para reclamar, que eu lhe tinha arrancado (as penas ou) o mérito da descoberta notável dos quadros num antiquário qualquer mambembe de uma galeria na Rua Siqueira Campos. Foi ai que entendi, mais ou menos, que tanta agonia, era devida ao fato que no O Globo daquele domingo, tinha saído um artigo de pé quebrado, sobre a epopeia dos benditos quadros. O cidadão não fez nenhuma questão de entender minhas explicações, enfurecido desligou sem despedir, e eu tratei de ir ler o tal artigo.  Reproduzo ele aqui, já que  o vejo publicado, estropiado com cortes, num site de Café e Breves. Claro que meu nome não aparece, e nem deveria. Entendo. Mas como saiu no artigo, e o embaixador confirmou tudo ao jornalista, ao bem da verdade, fica aqui o registro correto e a minha explicação.

Minha sorte com os Breves foi sempre fugaz, já que tempos depois, outros deles entrariam em contato comigo, por motivos diversos, mas nesse meio tempo, para piorar minha consideração e fama no meio dos nobilíssimos Breves, o genealogista açoriano Jorge Forjaz localizou a verdadeira origens dos "nobres Condes de Breves", na ilha de São Jorge. A verdade era serem eles oriundos de uma qualquer mulher solteira, cujo descendente tinha o apelido de Breves. Naquele estropiar de linguajar açorita, em que apelidavam-se uns aos outros com os epítetos mais incríveis, de maneira talvez de os diferenciar no meio do populacho e daquele extraordinário ramerrão de sobrenomes repetidos, onde por nove ilhas, todos são Coelho, Medeiros, Silveira, Dutra, Avilas, Fragas, Oliveiras etc etc etc.... Resta saber o que eles faziam naquela época, de breve para ganharem o apelido ligeiro. Se fosse hoje, eu sugeriria a hipótese de que são breves para telefonarem e reclamarem. E para esses outros que me escreviam, eu feito um idiota, a imaginar que queriam saber a verdade da origem ancestral, dava a boa nova, da verdadeira prosápia, não francesa, mas açoriana, para nunca mais receber notícias ou um obrigado pelos informes.... Acabei por publicar a verdade, quando chamado para colaborar no trabalho do Instituto Cidade Viva, que serviu de bibliografia, e motivo de aviso do meu amigo bibliófilo. 

Por hora hoje basta, vejo espantado que se passaram vinte anos do domingo fatídico.  Hoje por sorte temos a internet para divulgar outras versões de fatos e queixumes antigos. Acho que antes de morrer devo deixar acertadas aqui outras situações similares.

Volto BREVE, genealogia sempre rende papos, lembranças e descobertas incríveis: minhas próprias pesquisas mostraram no fim, que não há Breves no Brasil, que não sejam descendentes também de ancestrais meus, pois um dos mais remotos deles aqui na serra fluminense, casou-se com uma tia ancestral minha, de não sei quantas gerações. Se eu fosse como uma genealogista pretensiosa e falseta que conheci, Dona L.... , não hesitaria de declamar assanhado, essa tia que num emaranhado de casamentos, me liga a todos os Breves, graúdos e miúdos, como minha "tia tatara-tatara-tatara-atara-avó"..... 

Mas que ilusão!! Tudo dessa gente antiga é ilusão, nada do que se orgulhar, eles são tão caiporas quanto é este falar desta sacana e macróbia. Se singelos caipiras foram os velhos Breves, sapecadores de infelizes negros da região fluminense de Piraí e São João Marcos, assim também foram também, todos os integrantes da minha ancestralidade fluminense, com raras exceções. 

Ter trabalhado tantos anos em livraria, em contato direto com o público, onde entrava um e saía outro, o tempo todo, tudo que acontecia no Rio de Janeiro, as coisas mais dignas e indignas, acabavam ecoando pelo ambiente da livraria. Sabia-se assim de tudo que forma o material que rende as boas memórias. Quem sabe um dia......